Crítica y Resistencias. Revista de conflictos sociales latinoamericanos

N° 12 (junio-noviembre). Año 2021. ISSN: 2525-0841. Págs.69-84

http://criticayresistencias.com.ar

Edita: Fundación El llano - Centro de Estudios Políticos y Sociales de América Latina (CEPSAL)

 

 

 

Pluralismo jurídico nas favelas brasileiras: observações acerca da legitimidade[1]

Juridical pluralism in Brazilian favelas: comments on legitimacy

 

Arthur Votto Cruz[2] y Carlos André Sousa Birnfeld[3]

 

Resumo

As favelas brasileiras abrigam uma grande parte da população brasileira, sendo compostas em grande parte por moradores de baixa renda e em vulnerabilidade social, estando à margem não só dos centros das cidades como do interesse social do Estado. Desde o seu surgimento até os dias de hoje, as favelas são tidas como áreas onde o direito formal estatal não chega, sendo as vidas dos moradores regradas por normas informais, ilegais sob a ótica do Estado e advindas de grupos sociais ora democraticamente instituídos e ora de organizações criminosas que se impõem com o uso da força e da violência. Surge desse contexto de pluralismo jurídico o seguinte questionamento: em uma realidade de pluralismo jurídico como a das favelas brasileiras, existem normas jurídicas alternativas que sejam dotadas de eficácia, aceitação e legitimidade? A fim de responder a esse questionamento se buscou, através do método hipotético-dedutivo, do procedimento monográfico e da técnica de pesquisa bibliográfica das obras de Wolkmer, Santos, Barbato Jr, dentre outros, demonstrar que as normas jurídicas gestadas nas favelas cuja origem não sejam advindas das organizações criminosas, detém legitimidade para coexistir com as normas estatais, bem como suprir o vazio deixado pelo direito do Estado por sua omissão.

Palavras-chave: Favelas; Pluralismo jurídico; Legitimidade; Crime organizado; Associações de moradores.

 

Abstract

The Brazilian favelas shelter a large part of the Brazilian population, being largely composed of low-income and socially vulnerable residents, being not only away from the city centers but also from the social interest of the State. From its emergence to the present day, favelas are regarded as areas where formal state law does not arrive, and the lives of residents are run by informal norms, illegal from the point of view of the State and from social groups sometimes democratically instituted and others from criminal organizations that impose themselves with the use of force and violence. The following question that arises from this context of legal pluralism: in a reality of legal pluralism such as that of the Brazilian favelas, are there any alternative legal norms that are endowed with efficacy, acceptance and legitimacy? In order to answer this question, we sought, through the inductive method, the monographic procedure and the bibliographic research technique of the works of Wolkmer, Santos, Barbato Jr, among others, to demonstrate that legal norms developed in favelas whose origin whether in criminal organizations, has the legitimacy to coexist with state norms, as well as to fill the void left by the right of the State by its omission.

Keywords: Favelas; Legal pluralism; Legitimacy; Organized crime; Associations of residents.

 

Introdução

O questionamento: em uma realidade de pluralismo jurídico, como a das favelas brasileiras, existem normas jurídicas alternativas que sejam dotadas de eficácia, aceitação e legitimidade? A hipótese que buscará responder a essa pergunta é a de que as normas jurídicas gestadas nas favelas cuja origem não seja nas organizações criminosas, detém legitimidade para coexistir com as normas estatais, bem como suprir o vazio deixado pelo direito do Estado por sua omissão.

O método eleito para responder a esse problema é o hipotético-dedutivo, partindo do procedimento monográfico e da técnica de pesquisa bibliográfica. A primeira parte do trabalho será dedicada ao estudo das razões históricas, sociais e políticas que levaram à crise urbana brasileira e ao surgimento das comunidades faveladas, buscando trazer uma visão panorâmica e crítica sobre essa realidade social. As obras de Milton Santos e Gilberto Freyre serão fundamentais para que se cumpra o objetivo dessa seção.

A segunda parte tratará das manifestações do pluralismo jurídico nas favelas brasileiras e o papel dos vários atores sociais que atuam na criação e na aplicação do direito não estatal nas favelas, como também aqueles que a ele se submetem, dando especial ênfase para o direito alternativo de raízes comunitário participativas. Para esse fim, serão utilizados como base teórica os trabalhos de Boaventura de Souza Santos, Gurvitch, Barbato Jr. e Antônio Carlos Wolkmer.

Finalmente, a última parte do estudo buscará discutir a questão da legitimidade das normas jurídicas criadas no âmbito das favelas brasileiras tendo em vista a natureza de suas cominações, sua aceitação, efeitos, os interesses que atendem e sua origem.

 

1.                   O morro e o asfalto: como surgem as cidades e suas favelas no Brasil

Os processos que levaram à urbanização no Brasil se deram de forma diversa dos países desenvolvidos do norte global e, em certa medida, de seus pares na América Latina, dando às cidades brasileiras características únicas, sendo as suas paisagens bastante distintas mesmo sob os influxos da padronização dos espaços urbanos promovida pela globalização homogeneizante observada a partir da segunda metade do séc. XX. O que torna as cidades brasileiras únicas é o que também torna a compreensão das relações sociais e políticas que nelas se estabelecem tão complexas e dignas de estudo, sendo essa uma das razões da propositura desse ensaio.

As favelas, vastas porções das cidades que se desenvolvem às margens da infraestrutura urbana, dos equipamentos públicos de cultura e serviços, são onipresentes nas grandes cidades brasileiras, nem sempre nas periferias geográficas das urbes, mas sempre na periferia do interesse social do poder político e econômico.

A forma de produção das cidades brasileiras está intimamente ligada aos processos históricos de formação da sociedade brasileira, com seus ciclos colonizatórios, produtivos, migratórios e políticos. O êxodo rural vivenciado no país principalmente nas décadas de 1960 e 1970 foi o principal catalisador desse processo de urbanização massiva e não dá sinais de que seja um fenômeno passageiro, sendo que aproximadamente 85% da população tem suas residências em espaços urbanos ou urbanizados, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2015).

Há ainda um contingente de 6% da população urbana do Brasil que vive em favelas, comunidades ou, como tecnicamente tem sido chamados, aglomerados subnormais[4]. (IBGE, 2015).

Essa imensa parte dos habitantes das cidades é compreendida, na vasta maioria, por indivíduos das classes sociais de baixa renda. É também de onde advém uma importante parte da força de trabalho que movimenta a economia e o desenvolvimento do país.

O surgimento desses aglomerados precários remonta à gênese das ocupações urbanizadas no Brasil que sempre tiveram como modelo organizacional o desenho de “centro-periferia”, sendo o centro o local onde se instalavam os equipamentos burocráticos da exploração dos recursos naturais das terras brasileiras[5] e onde viviam os administradores públicos e onde a aristocracia agrária mantinha seus sobrados e negócios e serviços subsidiários à atividade rural. Nas periferias dessas incipientes cidades se concentravam as classes trabalhadoras, composta basicamente por negros libertos, mestiços e portugueses que não gozavam de prestígio, como mascates e comerciantes. (Freyre, 1962).

Os negros escravizados nos primeiros anos do período colonial habitavam nas fazendas de cana ou de criação de gado, onde eram colocados nas senzalas, apartadas das casas grandes, embora se localizassem na mesma propriedade. Foi durante o ciclo da mineração do ouro,

“[…] houve grande diversificação na economia colonial. Antes de mais nada, pelo aparecimento de uma produção ativa voltada ao abastecimento do mercado interno, como a pecuária no Rio Grande do Sul e no vale do São Francisco, ou a produção de mantimentos na própria capitania de Minas, em São Paulo e no Rio de Janeiro. O surgimento de vários núcleos urbanos em Minas Gerais, e mesmo o crescimento de antigas cidades como Rio de Janeiro e Salvador, também ativaram a economia interna. A produção de tabaco, no Recôncavo Baiano, foi outra atividade que recebeu impulso, pois se tratava de uma mercadoria central para a aquisição de cativos na Costa da Mina, especialmente valorizados nas zonas mineradoras.” (MARQUESE, 2006).

Nesse contexto surge a figura do escravo urbano, que coabitava os sobrados da embrionária aristocracia urbana brasileira, estando plenamente inseridos no cotidiano das cidades brasileiras do período. Esses escravos exerciam atividades de comércio (como as negras que vendiam quitutes, também chamadas ganhadeiras[6]), prestavam serviços mais complexos e muitas vezes ganhavam gorjetas, o que possibilitava que eventualmente buscassem a alforria através da compra da carta que garantiria sua liberdade e a possibilidade de se desvincular do senhor e de sua família (Soares, 1996).

Assim, nesse período, alguns poucos negros libertos, em conjunto com outros trabalhadores mestiços, soldados de baixa patente, dentre outros indivíduos desprovidos do direito real à propriedade de terras urbanas, passaram a ocupar cortiços (alguns deles ainda nos centros das cidades) e terrenos nas periferias das cidades ou nas zonas de morros. Por mais que essas ocupações precárias fossem comuns, não adquiriam, à época, as características das favelas atuais, com a dimensão e a importância no cenário urbano que possuem atualmente (Soares, 1996).

Foi apenas no final do século XIX e início do XX, já num Brasil independente e num império decadente, que ocorreram os fatos históricos determinantes para que esses assentamentos periféricos obtivessem as proporções atuais e os atributos que as definem. A abolição da escravatura em 1888 é fundamental para que o processo de urbanização no Brasil tomasse força, com o influxo de trabalhadores livres saídos das fazendas de monocultura e instalados nas incipientes indústrias de beneficiamento da produção agrária. O outro fato que determinou a formação da primeira favela do Brasil foi o final da Guerra de Canudos em 1897, quando os ex-combatentes desse conflito tiveram prometidas como soldo terras para a construção de suas residências de acordo com o art. 2º da Lei 3.371 conhecida como Lei Voluntários da Pátria de 1865[7].

Ao não terem atendido o seu direito à concessão de terras atendida pelo poder político da época, os ex-combatentes de Canudos se dirigiram ao Rio de Janeiro, na época a sede do Ministério da Guerra, exercer pressão a fim de ter seu direito garantido. Não tendo qualquer retorno positivo do poder público, não lhes restou outra opção senão ocupar com barracos partes do Morro da Providência, nas proximidades do prédio do Ministério da Guerra, que já era um reduto de negros recém-libertos e quilombolas e ali estabelecer suas residências.

“Mais tarde outros tantos se juntaram a eles vindos de diferentes partes do Brasil e por motivos diversos foram se juntando, e em pouco tempo o lugar se consolidou como um território de ocupação ilegal, irregular, sem respeito às normas ou à lei (...).” (GONÇALVES, 2011).

Os projetos de higienização e modernização urbanas levados a cabo na mesma época, somado ao desinteresse das instituições em sua infraestrutura e segurança igualmente contribuíram para a formação dessas ocupações que, mesmo partir da promulgação da Lei de Terras de 1850 que inaugurou a regularização fundiária e os direitos reais à terra no Brasil, continuariam ilegais[8]

A destruição a mando da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro do cortiço Cabeça-de-porco em 1893[9] para a construção do túnel João Ricardo, que passa justamente debaixo do Morro da Providência, é um exemplo desse fenômeno que ajudou a aumentar vertiginosamente o número de habitantes dos morros do seu entorno, uma vez que a população desalojada não tinha para onde se deslocar após a destruição de suas casas.[10]

Já nas décadas de 1950, 1960 e início de 1970, as cidades brasileiras passam a receber dezenas de milhares de migrantes advindos das zonas rurais buscando uma vida melhor no novo ciclo econômico das indústrias que se instalavam nos centros urbanos. Igualmente os planejadores urbanos têm de se adaptar ao influxo de automóveis que são produzidos pela indústria automobilística instalada que vinha se crescendo desde os anos 50 e, para tanto, foi necessário um novo ciclo de desapropriações, remoções e desmanche de comunidades marginalizadas socialmente e que passam a ser marginais também no espaço urbano.

As novas avenidas, rodovias e vias expressas, que representaram a força motriz do dito “milagre econômico” carreado pelo regime militar, também foram uma das razões para o crescimento das favelas nas cidades brasileiras, em face da expulsão das populações dos centros para as periferias e também pelo protagonismo do automóvel em detrimento do transeunte nos espaços urbanos do país (Santos, 2018, p. 39).

As favelas, a partir daí, se tornam os imensos aglomerados habitacionais que se observa em sua onipresença nas cidades brasileiras, habitadas por pessoas que não detém a propriedade de suas casas, não gozam das políticas públicas do Estado, e que se apresentam como espaços marginalizados, no sentido lato da palavra, uma vez que são percebidos como marginais ou foras-da-lei, assim como estão verdadeiramente à margem da lei e das políticas públicas do Estado formalmente estabelecido. Se de um lado o poder estatal e suas instituições não se preocupam em dar a essas populações a dignidade que as leis garantem, por outro tem a preocupação com a violência que esses seres marginais podem trazer à cidade formal, legal, com escritura, sendo o Estado brasileiro indiferente quanto ao bem-estar da favela e vigilante quanto às vidas que os favelados levam.

Assim, surgem as favelas no Brasil, fruto da extrema desigualdade social, racial e cultural, da atuação socialmente indiferente das instituições formais, da herança colonial exploratória, da ilegalidade paradoxalmente conveniente e inconveniente ao Estado. As favelas foram se tornando como guetos onde se concentram negros, mulatos, nordestinos, trabalhadores, desempregados, criminosos e todos aqueles que, querendo ou não, são invisíveis e, como as favelas, seres ilegais desde o nascimento até a morte, seja porque descumpram a legalidade, seja porque dela em nada se beneficiem.

 

2.                  A lei dos ilegais: pluralismo jurídico nas favelas brasileiras

A marginalidade das favelas é sentida não só em relação ao alcance das políticas públicas de desenvolvimento urbano, como também em relação às normas do Estado, estando, no mais das vezes, compelidas a criar suas próprias normas jurídicas ou então se submeter a um estado de relativa anomia.

O direito do Estado, nesse contexto, se coloca como uma força de coação hierarquicamente estabelecida com base no seu monopólio do poder coativo, se comportando não como uma ordem jurídica democrática e integrativa, mas sim como uma ordem de subordinação. Cria-se, nesse caso, uma resistência da parte populações submetidas a essa subordinação, uma vez que nunca puderam participar da constituição das imposições estabelecidas por esse direito estatal reforçado somente pela justificativa monopolista do poder coativo.

Nesse sentido, em face desse déficit representativo por parte do direito positivado, surgem nas favelas sistemas jurídicos próprios, exclusivos da territorialidade de onde nascem, dependentes ou subsidiários do poder coativo do Estado e muitas vezes inspirado por ele, que buscam, inseridos na realidade comunitária por razões sociais, culturais e espaciais, regular os negócios realizados no âmbito da comunidade e também visam garantir a resolução de conflitos,  a manutenção da paz e da segurança pública. Para tanto, os únicos entes capazes de alcançar o nível de organização e de permeabilidade social necessário para criar e garantir o cumprimento desse direito alternativo são, em regra, as associações de bairro e as organizações do crime, sejam facções do narcotráfico[11] ou as milícias[12].

As normas jurídicas que se formam no “vácuo” deixado pela ausência seletiva do poder do Estado certamente detém eficácia no cotidiano das favelas, o que assegura também que essas normas sejam aceitas e respeitadas pelos moradores que a elas se sujeitam. Contudo, a questão da legitimidade dessas normas jurídicas alternativas, principalmente daquelas que advém dos grupos criminosos organizados, é um ponto fundamental para que se possa, de forma crítica, avaliar os efeitos que esse fenômeno traz às populações das favelas.

As favelas no Brasil sofrem com a indiferença estatal no que diz respeito à aplicação de políticas públicas que visem o desenvolvimento de seus habitantes, sendo carentes de serviços públicos de saúde, saneamento básico, regularização fundiária, educação, iluminação pública, dentre outras garantias fundamentais atinentes à dignidade humana. Por conta dessa precariedade de vida e das dificuldades em alcançar postos de trabalho formal nos centros das cidades, às populações das favelas resta a informalidade e a criminalidade para a satisfação de suas necessidades básicas (Santos, 2018, p. 60).

Com o aumento da população, que buscou nos espaços das favelas a sua moradia, os conflitos envolvendo espaço e a posse de terras nos morros se tornaram inevitáveis. A total despreocupação do Estado com o resultado desses conflitos, bem como a distância dessas disputas do direito estatal, seja por sua natureza ilegal ou pela inacessibilidade dos envolvidos ao judiciário, frequentemente a “lei do mais forte” seria imposta através da violência física, através das facas e dos revólveres” (Santos, 1993).

Ainda, a ausência do poder do Estado e a invisibilidade causada por ela foi o que propiciou que atividades criminosas como o tráfico de entorpecentes se instalassem no seio das favelas, fazendo com que essas comunidades se submetessem à inevitável violência provocada pela atividade desses grupos criminosos. A Polícia Militar, preposta do poder estatal e do sistema de justiça, passa a ser a única presença do Estado nas favelas, sendo que a mesma, todavia, na busca pelo combate ao crime organizado, muitas vezes extrapola o seu limite de atuação, com resultados desastrosos para os moradores não participantes ao tráfico.

Diante dessa ausência seletiva do Estado e dos conflitos cada vez mais crescentes acerca da posse de terra ou das disputas por territórios promovidas pelos narcotraficantes, as populações das favelas, a fim de escapar da anomia que passava a viger e da violência cada vez mais severa que se impunha na resolução dos conflitos, foi criando formas de controle e resolução de conflitos alternativas àquelas do Estado.

O direito estatal, quando não eivado de instrumentos verdadeiramente democráticos para a resolução dos conflitos e de políticas de promoção e garantia de direitos, passa a ter sua sustentação meramente assegurada pelo monopólio do poder coativo, que é usado com cada vez mais violência, levando as comunidades mais excluídas da tutela jurídica do Estado a criar seus próprios ordenamentos.

“En síntesis, cuando el Estado es una asociación igualitaria de colaboración, el monopolio de coacción incondicionada, que le pertenece, no impide a su orden jurídico afirmarse como una especie particular del derecho social. Al contrario, cuando el Estado es una asociación jerárquica de dominación, su relación con la coacción incondicionada subraya de forma especial el carácter subordinador de su orden jurídico”. (GURVITCH, 2005, p. 94).

As disputas territoriais sobre os terrenos ilegais, partindo do pressuposto que não podem ser resolvidas nos tribunais formais por conta de sua natureza, passam a ser resolvidas no âmbito das associações de moradores que impõem as suas regras e detém o poder decisório sobre essa matéria. Vale ressaltar que

O surgimento das primeiras associações de moradores de favelas, nos anos 1940, aconteceu em um contexto de reação dos favelados às propostas de remoção das suas casas para lugares distantes do centro da cidade. Já no início da década de 1960, para tentar conter o seu crescimento, o governo municipal estimulou a formação de diversas associações, que seriam agências estatais dentro das comunidades para “auxiliar o governo na implantação de serviços básicos e na manutenção da ordem interna” (ROCHA, 2018).

Contudo, o que ocorreu foi o abandono do projeto das associações por parte do poder público, passando as associações a gozar de grande autonomia de ação e passando a gerir diversos aspectos das vidas dos seus associados. O poder que seria exercido pelo Estado, passaria a ser de titularidade daqueles que detém o poder de organização e aglutinação, como é o caso das associações de moradores. Mas também passaria sua titularidade para aqueles com maior poder de fogo, como é o caso dos traficantes de drogas e dos milicianos.

De uma forma ou de outra, os conflitos advindos da atuação do narcotráfico são resolvidos pelos tribunais do tráfico e pelas normas por eles criadas. As condutas dos moradores, neste compasso, não deixam de ser igualmente controladas pelos narcotraficantes:

“Para alguns dos integrantes da realidade na qual se circunscreve o narcotráfico, as condutas impostas de modo informal servem para a eles atribuir segurança. Os líderes do morro exercem papel claramente assistencialista, oferecendo todo tipo de favor àqueles que não dispõem da proteção estatal.” (BARBATO JR, 2013).

É fundamental que a favela esteja de alguma forma “pacificada” para que as atividades do narcotráfico de comércio, distribuição e fabricação de entorpecentes, possam ser realizadas de forma segura e lucrativa, sendo essa a razão para que patrocinem ações assistenciais - novamente no vácuo do poder/dever do Estado – e sejam os agentes mantenedores de alguma ordem no local. As normas de conduta criadas e impostas pelos traficantes invariavelmente são reforçadas através da violência e do uso da força, sendo frequentes as execuções sumárias, as torturas e ameaças.

Apesar da violência e dos abusos cometidos pelas milícias e pelos traficantes de drogas nos morros, a fim de manter a ordem através de suas normas e imposições, muitos habitantes das favelas acreditam ser essa uma forma eficaz de resolver os conflitos, de manter a paz e a prestação de serviços na comunidade. Evidente que essa não é a opinião unânime dentre os moradores das favelas, muito menos das forças externas à realidade da favela e do poder do Estado, que, quando não lhe é interessante, ou não lhe serve como assessório, não admite a existência de ordenamentos jurídicos alheios ao hegemônico. Nesse sentido, de acordo com pesquisa conduzida para avaliar a percepção da atuação dessas organizações criminosas na manutenção da ordem, se extrai o seguinte resultado:

“Retornando ao ponto inicial, se por um lado as milícias ainda cortejam a legitimidade dos moradores das comunidades, por outro lado cessou a tentativa de apresentar publicamente esses grupos como uma cruzada liberadora do narcotráfico ou sequer como um mal menor. Se em 2006 e 2007 existia um debate na imprensa sobre a natureza moral destes grupos, a partir da tortura dos jornalistas de O Dia em 2008 as milícias são diretamente equiparadas ao crime organizado. E nenhuma autoridade pública e nenhum formador de opinião se posiciona já publicamente a favor destes grupos. Em suma, as milícias carecem hoje de uma voz pública e renunciaram o seu discurso original de legitimação no debate público, mas não no interior das comunidades.” (CANO e DUARTE, 2012).

Surgem, portanto, a fim de combater o controle exercido pelo narcotráfico nas comunidades faveladas, os grupos de milícias que, sob esse pretexto, acabam por apenas trocar uma ordem jurídica alternativa e criminosa em sua origem, por outra igualmente opressora e criminosa. As milícias, geralmente compostas por ex-policiais, ex-militares[13] ou agentes de segurança privada, ao expulsar os traficantes, ocupam seu lugar e impõem a suas próprias regras, opostas às dos antigos “donos do morro”, mas não menos violentas e distante dos consensos mínimos acerca da moral e ética vigentes (BarbatoJr, 2013).

Os serviços prestados pela milícia vão desde a segurança, proibindo roubos e furtos nos limites da favela, disponibilização de serviços de TV a cabo, distribuição de gás de cozinha transporte privado e até construção civil, todos prestados mediante pagamento dos moradores que, frequentemente, são obrigados a contratar e o inadimplemento acarreta em espancamentos e mortes.

Essa é verdadeiramente uma realidade bastante ambígua, vez que esses grupos criminosos evidentemente exercem seu poder de forma violenta e ilegal, contudo, mantém a ordem jurídica e social nas favelas atendendo às demandas que o Estado não demonstra nenhum interesse em atender.

Num outro espectro da análise acerca da legitimidade desses direitos extraestatais, ainda sobrevivem e se destacam as associações de moradores, que também exercem poder normativo nas favelas ao regular, como dito, questões de disputas possessórias entre os moradores, bem como atendendo a outras demandas que surjam, tais como atividades culturais, de lazer e de representação coletiva perante aos órgãos do Estado. A ação das associações de moradores foi de suma importância para a regulação do chamado “direito de laje” que consiste na possibilidade de edificar uma casa sobre a laje ou no subsolo de outra construção, constituindo dois domicílios separados e com proprietários distintos. (Giacobbo, 2017).

A densidade demográfica das favelas e sua própria geografia física exige a verticalização das moradias, o que deu origem a prática social do direito de laje e a sua aplicação e regulação por parte das associações de moradores. Essas entidades intervinham no reconhecimento do direito possessório dos imóveis construídos sobre outros, bem como a sua qualidade de unidade domiciliar autônoma em relação ao imóvel sobre o qual foi edificado.

A atuação dessas instituições sociais extraestatais para o reconhecimento do direito de propriedade (ainda que não reconhecida pelo direito positivo) das edificações em lajes foi tamanha que, em rara inflexão, o legislador estatal reconheceu a validade desse direito de laje das favelas e o abarcou em seu ordenamento jurídico primeiramente sob a MPV 759/2016 e posteriormente sob a letra da Lei nº 13.456/2017. Por mais que não haja a necessidade desse acolhimento estatal para que um direito seja reconhecido como legítimo e eficaz, justo porque esse direito já funcionava, como ou sem Estado, esse fenômeno indica que o direito praticado nas favelas, nesse caso, é dotado dessas prerrogativas, confirmando, sob a égide do Estado, a prática jurídica alternativa.

A Lei nº 13.456/2017 ainda prevê a concessão plena e também sucessiva do direito real do imóvel edificado em lajes, contribuindo para a regularização fundiária tão importante para o desenvolvimento do urbanismo nas favelas brasileiras, vez que o Município, responsável pela regularização, deve elaborar projetos urbanísticos e de infraestrutura para essas áreas, bem como proceder ao cadastro dos moradores. A presença positiva do Estado evidentemente não se daria sem a contrapartida tributária, vez que a regularização impõe o recolhimento de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), o que atende, de forma bastante oportuna, os interesses fiscais do ente estatal (Giacobbo, 2017).

De qualquer forma, as normas e imposições dadas à população pelas associações de moradores são igualmente respeitadas e dotadas de eficácia, sendo as sanções para aqueles que não às respeitam a aplicação de multas e até a exclusão do indivíduo do quadro dos associados. Essas regras, surgidas no âmbito dessas comunidades subjacentes, são capazes de resolver, com mais eficiência e de forma mais democrática, questões que o direito do Estado não consegue ou não tem qualquer interesse em se ver envolvido, sendo evidente a importância dessas atividades jurisdicionais alternativas nas favelas[14].

A indiferença socialmente direcionada do direito estatal para as comunidades favelas expõe a necessidade da participação ativa dos atores que produzem esses direitos sociais nas comunidades subjacentes na construção de um ordenamento jurídico plural, construído pelos agentes locais em conjunto com os poderes do Estado.

Isso poderia se traduzir na expansão dos intérpretes da Constituição, que continuaria a ser a baliza limitadora da atuação desses novos agentes jurídicos, para que, de forma democrática e participativa, possam se relacionar com o Estado na busca e consolidação de formas mais democráticas, plurais e socialmente preocupadas de se criar direito (Giacobbo, 2017).

Por mais que também haja um interesse por detrás da atuação das associações de moradores, qual seja o eventual interesse político de seus integrantes, e também o econômico, se percebe que as atividades desses atores sociais não decorrem de condutas criminosas ou tampouco se impõe aos moradores das favelas de forma violenta ou imoral, sendo factível de se encontrar inclusive ressonância e acolhimento na legislação estatal, conforme se depreende do fenômeno de acolhimento por parte do Estado do direito de laje, cujo conceito se originou nas associações de moradores. Percebe-se, portanto, que nas comunidades faveladas do Brasil coexistem várias formas de poder jurígeno alheios ao do Estado, existindo uma situação em que diversos direitos são aplicados de várias formas e de forma simultânea (Barbato Jr, 2013).

“Quase na virada para o século XXI, o Estado brasileiro ainda não conseguiu monopolizar a produção e a distribuição do direito, que continua sendo apropriado por uma sociedade que, sentindo-se distante do Poder Judiciário, desenvolve seus próprios mecanismos de resolução dos conflitos.” (JUNQUEIRA, 1993).

Assim sendo, partindo da ideia de que o pluralismo jurídico é compreendido como a coexistência, no bojo da mesma sociedade, do direito estatal dominante e de outras formas de juridicidade, é claro que na realidade das favelas o que vige é um pluralismo jurídico multifacetado, compreendendo, ainda que de forma seletiva, a atuação do direito estatal, do direito das milícias e narcotraficantes e das associações de moradores, em que pese se deva ter claro que esse último, talvez o mais legítimo, seja de todos o mais subsidiário

Todas essas ordens jurídicas gozam de algum grau de eficácia e aceitação por parte dos que a elas se submetem, contudo, dado que algumas surgem no seio de organismos criminosos e outras surgem de movimentos espontâneos dos moradores, fica em aberto a questão da legitimidade desses direitos alternativos, o que será discutido na próxima seção desse ensaio monográfico.

 

3.                  A legitimidade das leis faveladas: os limites éticos e morais do Direito Alternativo

As normas jurídicas que surgem no espaço vazio, deixado pelo vácuo do Estado em atender as demandas por justiça e serviços públicos nas favelas, têm diversas origens e formas de aplicação e são advindos, em regra, da necessidade de se atender demandas por ordem, segurança, paz e a garantia de serviços básicos para que se leve uma vida digna. Contudo, a exceção a essa regra são as normas jurídicas que têm sua origem na atuação de grupos de evidente caráter criminoso que, em busca da manutenção do sucesso de suas atividades, criam regras para manter a ordem e a segurança, bem como para ganhar a simpatia dos moradores nos locais onde atuam.

A questão da validade dessas juridicidades alternativas ao monismo estatal, sua eficácia, seu reconhecimento e sua legitimidade são fundamentais para que se possa avaliar de forma qualitativa os efeitos que esses direitos informais trazem para as comunidades onde são exercidos. Para tanto, se busca compreender cada um desses elementos que constituem as normas jurídicas para poder fazer esse exercício avaliativo acerca do exemplo de pluralismo jurídico presenciado nas favelas brasileiras.

Assim sendo, se tem como pressuposto básico que as regras surgidas nas favelas são rigorosamente normas jurídicas, uma vez que se impõem não por mera escolha individual, mas sim por um intrincado e complexo arranjo social que deve ser respeitado. Nesse sentido se pode afirmar que

“As regras da lei sobressaem ao resto [das regras] porque são sentidas e consideradas obrigações de uma pessoa e justos direitos de outra. São sancionadas não por um simples motivo psicológico, mas por um mecanismo social definido de força compulsória, baseado, como sabemos, na dependência mútua e realizado no arranjo equivalente de serviços recíprocos e na combinação desses direitos em correntes de relacionamento múltiplo” (MALINOWSKI, 2003, p.47.)

O Direito apresenta-se, nesta perspectiva, portanto, como um fenômeno social muito mais amplo e anterior à concepção de Estado (e ao contrato social) (Gurvitch, 2005, p. 164). Nesse sentido, as leis surgidas nas favelas são de fato normas jurídicas, devendo, portanto, serem tratadas como tais para o fim de estudá-las, sob a perspectiva do pluralismo jurídico, nos termos em que considera Wolkmer (2001). Se passa, pois, à análise da eficácia e da aceitação dessas normas jurídicas.

As leis surgidas nas favelas, sejam elas fruto da ação do narcotráfico ou milícias, sejam das ações das associações de moradores, têm plena eficácia, uma vez que são acatadas e cumpridas pelos moradores, ora por coação violenta, ora volitivamente, a partir do consenso coletivo no qual se ampara. As regras atingem seus objetivos de resolução de conflitos e de manutenção da ordem nas favelas, independentemente de como se fazem cumprir e, para o fim da análise da eficácia, o cumprimento da finalidade da lei é bastante.

Essas leis são da mesma forma amplamente aceitas pela população das comunidades, estando presente na mesma, a respeito delas, o sentimento de justiça (Barbato Jr, 2013). Entretanto, por mais que seja de suma importância que esse sentimento esteja reconhecido pelos destinatários de um sistema jurídico alternativo, esse sentimento só pode ser devidamente avaliado se um arranjo é mais ou menos justo, tendo como parâmetro, a falta de outro com maior grau de consenso, justamente o próprio direito estatal, na plenitude de suas regras e princípios[15].

Para Barbato Jr. (2013), no caso das favelas brasileiras, as populações jamais tiveram pleno conhecimento ou mesmo foram destinatárias do direito estatal, carecendo, portanto, de um contraponto para saber se o direito cotidianamente aplicado é de fato justo ou não. Por outro lado, considera-se oportuno obtemperar que a questão do reconhecimento da similitude com o direito estatal esteja muito mais para o intérprete do fenômeno do que para seu artífice. Se alguém respeita o horário de silêncio noturno a fim de resguardar o sono alheio, porque acha isso razoável, ou porque consta em um texto religioso e não porque saiba que existe uma norma Municipal a esse respeito, o fato é que ele reconhece uma norma de respeito ao silêncio e isso se coaduna com valores contidos no direito estatal, ainda que ele, o praticante da norma, sequer saiba disso. 

De qualquer forma, é possível afirmar que as leis produzidas nas favelas são:

a)        de fato normas jurídicas;

b)      dotadas de eficácia, cumprindo seus objetivos e;

c)       dotadas de ampla aceitação e reconhecimento por parte das populações a elas submetidas.

Assim, resta a análise acerca da legitimidade dessas leis, advindas de origens diferentes no que diz respeito à legalidade da fonte jurígena e do modus operandi de seus aplicadores.

Para Bobbio (2003, p. 31), por mais que essas normas sejam formuladas por uma instituição criminosa, se a sua finalidade é manter a ordem entre seus membros, elas são um ordenamento jurídico legítimo, em suas palavras, “até uma associação de delinquentes, desde que seja organizada com a finalidade de manter a ordem entre seus membros, é um ordenamento jurídico”. Esse pensamento é bastante perigoso quando se transfere para a realidade das favelas brasileiras, vez que se estaria legitimando um sistema legal calcado em violações severas dos direitos mais fundamentais dos seus destinatários.

Já para Wolkmer (2001), a legitimidade de um sistema jurídico alternativo está intimamente ligada à noção de necessidade da criação desse sistema, em primeiro lugar. Para o autor, é essencial que o direito alternativo seja criado para que supra uma necessidade de regulação que não está sendo atendida pelo direito formal ou por outra forma de controle social jurídico, o que se tem na realidade das favelas brasileiras.

No entanto, outros pressupostos devem ser cumpridos para que haja a legitimidade de um sistema jurídico alternativo sendo que

“(...) nem toda a manifestação legal não-estatal ou nem todo “direito” aí produzido pode ser justo, válido e ético, pois um corpo social intermediário ou grupo dirigente qualquer pode criar regras perversas, objetivando atender interesses contrários à comunidade, expressando diretamente intentos de minorias identificadas com o poder, a dominação, a exploração e o egoísmo. Nesse caso, existem direitos particulares produzidos por uma pluralidade de grupos sociais que não são justificáveis e legítimos. (...) A ausência de valores mínimos e universais relacionados à eticidade e à justiça esvaziam a legitimidade desses “direitos”. Exemplificação disso pode ser visto nos grupos societários como a Máfia na Itália, a Ku Klux Klan nos EUA, o Cartel de Medellín na Colômbia e os antigos esquadrões da morte no Brasil”. (WOLKMER, 2001, p. 324).

Nesse sentido, se vê que as normas jurídicas produzidas pelas organizações criminosas presentes nas favelas brasileiras são ilegítimas, vez que não atendem ao requisito fundamental de cumprir com os valores mínimos de ética e moral que são universalmente reconhecidos, sendo esses os “critérios-limite” para o reconhecimento da legitimidade das leis.

Ainda, a sua atuação e a forma pela qual aplicam suas regras, utilizando de violência, tortura, morte e terror não atendem às necessidades básicas das populações faveladas, vez que o ônus da submissão a essas leis é maior do que o benefício auferido pela ordem por elas trazida (Barbato Jr, 2013).

As normas alternativas, para serem legítimas, devem advir de grupos comprometidos com as causas do “justo” do “ético” e do “bem comum” de grande parcela da comunidade, o que não acontece no caso dos narcotraficantes e milicianos que, além de estarem distantes dos “critérios-limite” de legitimidade, visam basicamente a atenção dos seus próprios interesses em detrimento da coletividade. Vale ressaltar, que os conceitos de “justo”, “ético” e “bem comum” são escolhas coletivas, não impostas pelo direito monista estatal, mas sim estabelecidos sob a égide de um consenso sobreposto num sentido rawlsiano, no qual se impõe a percepção de que, para que seja membro de uma sociedade cooperativa, se necessita como condição a noção de senso de justiça e a uma concepção do bem. (Weber, 2011, p. 132).

Nesse sentido, “cidadãos que convivem em meio a instituições básicas justas desenvolvem o senso de justiça”, assim como, os indivíduos, de forma autônoma, são capazes de formular suas concepções de bem, desde que de acordo com os princípios de justiça. (Rawls, 2005, p. 19).

O mesmo não se pode dizer do direito concebido pelas associações de moradores. Esse sistema decisório e de regulação de condutas, desde sua gênese, se preocupa em atender às demandas justas dos moradores das favelas, buscando, da forma mais democrática e aberta possível, resolver os conflitos surgidos de forma pacífica.

Por mais que posam existir conflitos de interesses ou a corrupção dessas associações para atender ambições particulares, essa realidade não chega a afetar substancialmente as vidas dos associados, sendo as regras aplicadas por essas entidades construídas de forma coletiva em assembleias e reuniões, sendo os impulsos particularizantes dos dirigentes das instituições diminuídos. Dessa forma, se vê que até a atividade judicial das associações de moradores das favelas é legítima, sendo um meio plenamente válido e eficaz para que as populações atingidas pela indiferença do Estado perante os seus interesses tenham reconhecidas as suas demandas e tenham seus conflitos resolvidos de forma justa e eficiente.

Assim sendo, existe uma clara diferença entre as normas legais advindas das associações de moradores e aquelas impostas pelos líderes do narcotráfico e das milícias. As primeiras são capazes de atender ao interesse coletivo por uma ordem judicial justa, eficiente, que seja capaz de resolver os conflitos entre os moradores de forma pacífica, além de atender aos pleitos por assistência e bem-estar, dentro de patamares moral e eticamente aceitáveis e focados no bem comum.

Já as regras impostas pelo crime organizado têm apenas o propósito de manter a ordem e a paz, de forma violenta, para que as atividades criminosas dos seus agentes possam prosperar, sendo que, por mais que atendam a alguns interesses dos moradores, o fazem de forma ilegítima e por meios antiéticos e imorais.

Se percebe, portanto, que existem regras jurídicas alternativas criadas no âmbito das favelas brasileiras que atendem aos critérios de eficácia, reconhecimento e legitimidade, cujo exemplo trazido é o do caso das associações de moradores, ao passo que outras, como as criadas pelos líderes do tráfico e pelos milicianos carecem do último requisito de validade, a legitimidade.

               

Conclusões

O presente artigo teve por foco precípuo investigar se em uma realidade de pluralismo jurídico, como a das favelas brasileiras, existem normas jurídicas alternativas que sejam dotadas de eficácia, aceitação e legitimidade.

Observou-se , nos termos do item 1, que, desde a criação das favelas, as pessoas que lá habitam têm de lidar com uma realidade paradoxal em vários aspectos. Se de um lado sofrem com a indiferença do Estado e a sua ausência, por outro o Estado é presença constante para reprimir e exercer seu poder de vigilância e violência sobre os moradores; se por vezes são obrigados a conviver com um estado de anomia, por outros têm de se submeter a uma pluralidade de direitos vigentes ao mesmo tempo de origens diversas.

Como se viu no item 2, A fim de escapar de um estado de anomia total, surgem nas favelas ordenamentos jurídicos extraestatais que buscam suprir demandas sociais, impor a ordem e resolver os conflitos que eventualmente surjam. Esses direitos alternativos muitas vezes surgem das lideranças que se destacam no morro, em parte das associações de moradores, pelos narcotraficantes ou pelos milicianos.

Na terceira sessão se viu que esses novos ordenamentos jurídicos ocupam o vácuo deixado pelo Estado, cumprindo seus objetivos e gozando de aceitação e reconhecimento pela maior parte dos moradores das favelas. Contudo, dada a origem criminosa das regras jurídicas impostas pelo crime organizado, que se impõem através do uso da violência, intimidação e terror e objetivam alcançar muitos interesses alheios aos da coletividade, não se pode considerar como legítimas essas imposições normativas.

Diversamente, o direito que surge das associações de moradores é, de fato, legítimo, sendo capaz de promover ações coletivas de assistência social e auxiliar na resolução de conflitos que são deixados de lado pelo direito formal do Estado de forma pacífica e dentro dos critérios-limite, da Constituição, da moral e da ética universalmente reconhecidas. Dessa maneira, a hipótese trazida e aqui comprovada é de que existem normas jurídicas extraestatais concebidas nas favelas brasileiras dotadas de eficácia, reconhecimento e legitimidade se confirma, em face dessa realidade, desde que excluídas desse rol aquelas criadas pelos grupos criminosos.

 

Referências bibliográficas

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[1] Fecha de recepción: 10/09/2020. Fecha de aceptación: 20/03/2021.

[2] Estudiante de maestría del Programa de Posgrado en Derecho y Justicia Social de la Universidad Federal de Rio Grande - FURG, Licenciado en Derecho de la Universidad Federal de Rio Grande - FURG; miembro del grupo de investigación sobre Gestión Local y Políticas Públicas del Programa de Posgrado en Derecho de la Universidad de Santa Cruz do Sul - UNISC; Abogado Laboral y Previsional. Brasil.

[3] Profesor Titular de la FURG, integrando el Programa de Posgrado en Derecho y Justicia Social, Máster y Doctor en Derecho de la UFSC. Brasil.

[4] Vale destacar aqui a origem do termo favela como forma de denominar esses aglomerados urbanos subnormais e com características socioculturais próprias. A utilização do nome favela remonta ao início do século XX, quando no Rio de Janeiro, o Morro da Providência, que já abrigava moradores provenientes dos cortiços postos abaixo pela gestão do prefeito Barata Ribeiro, além de negros recém libertos do regime de escravidão, passou a abrigar ex-combatentes da Guerra de Canudos. A esses soldados fora prometido pelo Ministério da Guerra o pagamento de soldo e bonificações, o que não se cumpriu, forçando o grupo de militares a se deslocar até a então Capital Federal para cobrar esses valores. Não havendo consenso entre o Ministério da Guerra e os ex-combatentes de Canudos, muitos desses tiveram que se instalar justamente no Morro da Providência, que se localizava nas cercanias do prédio do Ministério. Por esse morro carioca ter uma semelhança física com um morro chamado de Morro da Favella, esse localizado ao Sul do assentamento de Canudos, os praças resolveram renomear o Morro da Providência, utilizando o nome do acidente geográfico que conheceram na Bahia. De acordo com Cruz (1941, p. 14.), A favela tem sua toponímia ligada à chamada “guerra de Canudos”. Terminara a luta na Baía. Regressavam as tropas que haviam dado combate e extinguiram o fanatismo de Antônio Conselheiro. Muitos soldados solteiros vieram acompanhados de “cabrochas”. Elas queriam ver a Côrte... Êsses soldados tiveram de arranjar moradas. Foram para o antigo morro de S. Diogo e, aí, armaram o seu lar. As “cabrochas” eram naturais de uma serra chamada Favela, no município de Monte Santo, naquele Estado. Falavam muito, sempre da sua Baía, do seu morro. E aí ficou a Favela nas terras cariocas. Os barracões foram aparecendo, um a um. Primeiro, na aba da Providência, morro em que já morava uma numerosa população; depois, foi subindo, virou para o outro lado, para o Livramento. Nascera a Favela. 1897 (CRUZ, 1941 p.14).

[5] Nos primeiros anos da exploração lusitana no Brasil, quando se instalou o ciclo de extração do pau-brasil, os pequenos povoados que viriam a se tornar as primeiras cidades brasileiras abrigavam, em regra, uma feitoria, uma igreja, um forte ou quartel militar e cartório. No ciclo da cana-de-açúcar e da mineração é que começam a surgir equipamentos públicos mais complexos, bem como surgem as câmaras municipais, (que eram ao mesmo tempo foro, cartório, almotacé, presídio e sede do governo local), as primeiras oficinas, mercados e prestação de serviços e quando surgem as elites urbanas, ainda que ligadas às atividades agrícolas. (FREYRE, 1962).

[6] Sobre as negras ganhadeiras, vale a leitura do trabalho de Cecília Moreira Soares “AS GANHADEIRAS: mulher e resistência negra em Salvador no século XIX”. (SOARES, 1996).

[7] Art. 2º- Os voluntários que não forem Guardas Nacionais terão, além do soldo que recebem os voluntários do exército, mais 300 réis diários e a gratificação de 300$000, quando derem baixa e prazo de terras de 22.500 braças quadradas nas colônias militares ou agrícolas.

[8] A regularização fundiária prevista na Lei de Terras de 1850 e, posteriormente regulada pelo Decreto n.º 1.318, de 30 de janeiro de 1854, estabelecia que era incumbência dos vigários, na circunscrição de suas paróquias, receber as declarações de registro de terras e validá-las perante a Santa Sé. O que ocorria, de fato é que o efeito desse registro era meramente declaratório junto à Igreja e, posteriormente, ao Império, não reconhecendo sobre o imóvel o direito real de uso a quem detivesse a posse do imóvel, servindo apenas para que se cobrassem taxas, por parte da Igreja, para a ocupação e utilização das terras. Nesse sentido, apenas aqueles com condições de arcar com as taxas de registro, manutenção e demais tributos às terras atribuídos, é que eram capazes de ter qualquer tipo de reconhecimento, mesmo que precário, da posse e usufruto de bens imóveis no Brasil. (SOBREIRA DOS SANTOS, 2016, p. 29).

[9] Estima-se que ao tempo de sua demolição o cortiço abrigava de 2.000 a 4.000 habitantes.

[10] Esse fenômeno ocorreu em todo o Brasil, não sendo exclusivo ao Rio de Janeiro. Sobre processo semelhante ocorrido em Porto Alegre, ver em: SILVEIRA, Alexandre Barcelos . De colônia africana a bairro Rio Branco: desterritorialização e exílio social na terra do latifúndio: Porto Alegre, 1920-1950.  Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 2015. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10923/7278> Acesso em 27 jul. 2019.

[11] Acerca do tema do domínio que o narcotráfico exerce sobre as comunidades faveladas do Rio de Janeiro, se destaca o seguinte excerto do texto de Beatriz Maria Soares Pontes (2009, p. 81-82): A “territorialização”, operada pelo tráfico, gerou a seguinte situação: antes, as “comunidades” sediadas nos morros do Rio de Janeiro eram mais abertas, facultando aos membros de “comunidades” diferentes visitarem-se, mutuamente. Todavia, com o correr do tempo as aludidas “comunidades” fecharam-se entre si. Como conseqüência de tal fechamento resultou uma nova realidade expressa através de “territórios inimigos”. Nos espaços que interligam os “territórios inimigos”, considerados neutros, transitam as forças do Estado, tentando manter a ordem de há muito perdida. Nesta “área neutra” poderão ocorrer mortes conseqüentes dos confrontos entre os traficantes e as “forças da ordem”. A territorialização, via narcotráfico, como fator de fragmentação político-espacial do tecido urbano, é, ao mesmo tempo garantia para os membros de cada “comunidade”, de que nos limites do seu território, também, apropriado por uma facção do crime organizado, disporão de uma certa segurança. Tal segurança não lhes é asseverada pela polícia membros de “comunidades” diferentes visitarem-se, mutuamente. Todavia, com o correr do tempo as aludidas “comunidades” fecharam-se entre si. Como conseqüência de tal fechamento resultou uma nova realidade expressa através de “territórios inimigos”. Nos espaços que interligam os “territórios inimigos”, considerados neutros, transitam as forças do Estado, tentando manter a ordem de há muito perdida. Nesta “área neutra” poderão ocorrer mortes conseqüentes dos confrontos entre os traficantes e as “forças da ordem”. A territorialização, via narcotráfico, como fator de fragmentação político-espacial do tecido urbano, é, ao mesmo tempo garantia para os membros de cada “comunidade”, de que nos limites do seu território, também, apropriado por uma facção do crime organizado, disporão de uma certa segurança. Tal segurança não lhes é asseverada pela polícia

[12] Sobre o controle que as milícias exercem sobre as comunidades suburbanas do Rio de Janeiro,

[13] Zaluar & Conceição (2007) irão afimar que o termo “milícia” irá se referir especialmente de grupos compostos por policiais e ex-policiais em sua maior parte policiais militares, bombeiros e agentes penitenciários, dotados de treinamento militar e pertencentes ou que pertenceram a instituições do Estado. Esses grupos se sentem empoderados da função de proteger e dar segurança à vizinhanças que supostamente são ameaçadas por traficantes.

[14] Sobre a atuação das associações de moradores nas favelas e sua contribuição para a resolução de conflitos de uma maneira mais democrática, se traz a contribuição de Eduardo Nogueira dos Santos de Souza (2014, p. 2-3) que estabelece que: “o espaço político e os fenômenos associativos de base são marcas de uma democracia. Conforme o Brasil conduziu sua abertura democrática os espaços políticos surgiram como formas de deliberação e foram ativados pelos movimentos associativos. Desta forma o momento ápice da criação de novas associações fora justamente o período após o regime militar, pois associações de moradores que surgem apartidárias e com ênfase nos problemas locais, do bairro, já não precisam da clandestinidade para existir. Os movimentos associativos de base surgem através de redes de solidariedade entre os moradores que através da ajuda mútua procuram melhorar o terreno compartilhado pelos moradores, o espaço da rua, e constituir uma força que participará da tomada de decisões na cidade”.

[15] Partindo desse pressuposto, se vê que a legitimidade de uma norma jurídica alternativa extra legem, adotada no contexto das comunidades das favelas brasileiras, não é medida da mesma maneira do que as normas jurídicas produzidas nas comunidades indígenas, cuja legitimidade é inclusive reconhecida pelo ordenamento jurídico do Estado brasileiro, a despeito de, eventualmente, serem contrárias a ele. Essa realidade traz outro questionamento interessante, mas que, contudo, não se tratará de discutir nesse trabalho, que é o seguinte: se o direito brasileiro aceita as tradições comunitárias indígenas, que são comunidades marginais por razões históricas e geográficas, porque não reconhece as normas alternativas das comunidades faveladas que, da mesma forma que as indígenas, se posicionam igualmente de forma marginal?